A inteligência artificial, até então tratada como backstage das operações, passa a ser um dos principais tópicos da estratégia regulatória. O PL 2338/23 inaugura, para o mercado brasileiro, um novo padrão de processos: não basta mais adotar tecnologia sob o pretexto da eficiência; será necessário justificar, em cada etapa, a razão de ser de cada automação incorporada ao processo decisório e comunicacional.
O projeto, aprovado no Senado no ano passado e atualmente tramitando numa comissão especial na Câmara, propõe o primeiro marco legal brasileiro para inteligência artificial, estabelecendo regras para desenvolvimento, implantação e uso responsável de sistemas de IA em todo o país. Isso inclui exigências de transparência, rastreabilidade, avaliação de riscos e responsabilidade técnica para qualquer aplicação relevante, como no mercado financeiro.
De agora em diante, nenhuma linha de código será ignorada. Todo sistema que, de algum modo, influencia análise de risco, pricing, relacionamento com o investidor ou construção de narrativa, precisará estar formalmente registrado, com rastreabilidade e governança clara. O improviso tecnológico perde espaço para uma lógica de inventário, pronto para ser auditado, testado e, sobretudo, explicado em linguagem que faça sentido para alocadores sofisticados e órgãos reguladores.
A arquitetura por trás de cartas, relatórios e fluxos de atendimento deixa de ser mero suporte operacional e passa a integrar, de forma explícita, a estratégia de posicionamento e confiança do gestor. Transparência, aqui, não é narrativa: é premissa para continuar jogando em alto nível.
Da teoria à vantagem estratégica: como antecipar as exigências
Para quem está no comando da gestão de recursos, o desafio já não é apenas cumprir tabela. O movimento agora é antecipar. O PL 2338/23 e a pressão internacional desenham um novo patamar de diligência.
O primeiro passo é mapear todos os fluxos automatizados: do scoring ao RI, das cartas ao compliance. Inventário, aqui, não é exercício burocrático: é espelho do que a casa realmente controla, entende e pode defender diante de qualquer diligência de regulador, auditor ou LP global.
O segundo é criar musculatura interna para discutir IA sem “GPTês” e sem terceirização de responsabilidade. O RI, o jurídico, o time de tecnologia e quem faz a operação acontecer precisam falar a mesma língua, saber explicar escolhas, justificar modelos e demonstrar que governança não é só discurso.
Terceiro: transformar disclosure técnico e “nutrition label” em argumento de confiança, não em defesa reativa. O LP sofisticado percebe, em segundos, quando a casa domina a própria tecnologia e quando está apenas cumprindo formalidade.
Por fim: olhar para benchmarks globais. Frameworks de Singapura, práticas da Europa, recomendações do IOSCO são boas recomendações; não como modelos importados, mas como sinal do tipo de disciplina que já baliza o fluxo de capital. A disputa, daqui em diante, é por confiança explícita. E confiança se constrói. Nunca se simula.
No fundo, o que o PL 2338/23 faz é oficializar uma virada de página que o mercado global já vinha escrevendo: tecnologia não é mais diferencial, é pré-requisito. O que diferencia cada vez mais é a capacidade de expor escolhas, construir narrativa técnica e mostrar que inovação é sempre acompanhada de responsabilidade.
A régua subiu. Não existe mais espaço para improviso ou storytelling que tenta esconder a ausência de estrutura. O investidor sofisticado e até o regulador local já entenderam: governança não é filtro de risco, é fundamento de captação.
O futuro do asset management brasileiro será pautado por quem souber transformar transparência em vantagem estratégica, governança em argumento de confiança e, principalmente, tecnologia em extensão de valores.
AI washing é realidade em due diligence
O verdadeiro risco, agora, já não é mais entregar performance ou aderir ao protocolo regulatório. É perder o capital de confiança construído junto aos investidores. O fenômeno do AI washing deixou de ser rumor para se tornar critério relevante em processos de due diligence. O mercado global já captou a mensagem: prometer inteligência artificial e entregar automação trivial, ou inflar o papel da tecnologia para impressionar alocadores, virou sinônimo de exposição reputacional.
Reportagem recente da Funds Society expõe o desconforto: 37% dos LPs latino-americanos já se depararam com casos de sobreposição entre discurso e realidade tecnológica; as famosas promessas grandiosas de IA que, ao final, não passam de apresentações em PowerPoint. E, à medida que Europa e Estados Unidos formalizam exigências de disclosure técnico e inventário, o ambiente para subterfúgios ou narrativas rasas se estreita.
O PL 2338/23 apenas antecipa o inevitável: quem se antecipa na entrega de transparência, documentação e governança já eleva o patamar competitivo. Quem posterga, ou subestima a inteligência do investidor institucional, verá portas se fechando. A disputa por capital qualificado se torna, cada vez mais, um jogo para poucos.
No contexto brasileiro, onde a reputação e o vínculo relacional com o investidor ainda têm peso relevante, apostar em IA como commodity é reduzir valor. O desafio agora passa a ser equilibrar ambição tecnológica com consistência de propósito, entregando inovação sem abrir mão de princípios.