Um dos grandes cambios que o ano de 2025 deixou é a mudança na percepção do risco em torno da dívida dos EUA. Em abril, com o anúncio da nova política tarifária, os CDS dos EUA dispararam, o dólar e a renda variável caíram simultaneamente e os yields dos títulos se dispararam. “O problema da dívida está nos EUA, não na Europa. É um grande problema, mas a Administração Trump está totalmente consciente e comprometida a resolvê-lo, e tenho confiança de que vão arrumá-lo”, afirma com contundência Christophe Morel, economista-chefe da Groupama Asset Management. Agora, como será a nova arquitetura do financiamento nos EUA? O que isso implica para os investidores?
Em uma recente apresentação à mídia em Paris, Morel detalhou como será a mudança na arquitetura da dívida dos EUA, o mercado de títulos mais líquido e influente do mundo. Embora entusiasmado, também foi claro quanto à magnitude da tarefa: “O problema dos EUA é tão enorme que a solução não será convencional”.
O especialista antecipa para os próximos meses mudanças no Federal Reserve e um ambiente de repressão financeira para facilitar a refinanciamento da dívida. “O plano claramente é reduzir a duração da dívida nos EUA”, declarou. Atualmente, a dívida soberana americana apresenta uma duração média em torno de 5 anos. Segundo Morel, a nova administração está buscando que a taxa de refinanciamento dependa da parte curta da curva, “porque é mais fácil de administrar”, e isso explicaria também as fortes pressões que o Federal Reserve recebeu nos últimos meses para começar a reduzir as taxas de juros.
Essa nova arquitetura da política econômica seria pensada para enfrentar o financiamento do governo e consistiria de quatro pilares: guerra comercial, desregulamentação bancária (dar maior flexibilidade aos bancos americanos para comprar mais Treasuries), mais stablecoins – manobra que Morel descreve como “outra maneira de refinanciar o Tesouro” –, e que o Fed volte a ampliar seu balanço. Segundo cálculos do especialista a partir de dados públicos, somando esses quatro pilares o Tesouro americano poderia captar até 10 trilhões de dólares, o equivalente a um terço da dívida pública do país.
Mas o plano não termina aí. Para Morel, nos EUA “todas as luzes estão verdes para a reaceleração do investimento nos próximos meses, não apenas em IA, mas em todas as partes da economia”. A favor dessa tese está o fato de que a dívida corporativa “está se reduzindo”, em um momento em que as companhias norte-americanas “têm muito caixa” em seus balanços. Pode parecer uma visão mais positiva que a do consenso, mas o especialista defende que essa previsão “ainda não está se refletindo nas narrativas”, em referência às últimas leituras dos PMI.
Quais riscos poderiam turvar esse cenário de recuperação? Morel cita dois principalmente: que não sejam realizados investimentos no país fora da IA, e um possível retorno da inflação que obrigue o Fed a interromper seu ciclo de cortes de juros, motivo pelo qual a empresa está monitorando as expectativas de inflação. Dito isso, ao mesmo tempo, também está monitorando a política dura de imigração aplicada pela administração Trump, dado que ela impacta o componente de preço da habitação no CPI: a redução da migração líquida exerce pressão negativa sobre o preço das moradias, que atualmente representa um terço do componente da inflação.
Rumo a um regime de resiliência cíclica
Em linhas gerais, Christophe Morel se declara otimista com o ambiente econômico, mesmo diante do contexto atual de múltiplas incertezas. Seu ponto de vista é que o mundo está imerso em um processo de transição com múltiplas facetas (geopolítica, demográfica, energética…) e a chave para enfrentar esses desafios será necessariamente um aumento dos investimentos, que alimentarão o novo ciclo macroeconômico. “Para mim, o mais importante dos últimos 3-4 anos é que estamos vendo e veremos ainda mais investimentos. É a única maneira de conseguir taxas mais altas de crescimento no futuro, e é a grande mudança em relação ao que vivemos na década anterior”, resume.
Para Morel, a pandemia de 2020 foi o que mudou as regras do jogo: “Antes, a dívida era algo ruim, estávamos aterrorizados com o problema da dívida na Europa. A crise da covid foi muito importante, porque de um dia para o outro todas as razões de dívida nos países desenvolvidos dispararam em 10-20% e nada aconteceu nos mercados. A dívida nem sempre é o problema. Às vezes é parte da solução”, conclui.
Assim, o economista antecipa que estamos nos primeiros estágios de um ciclo de investimento sustentável e de longo prazo, no qual Estados e empresas “não terão outra escolha senão investir para sobreviver”. Morel descreve o ambiente que predominou nos mercados desde 2022 como “um regime de resiliência cíclica”, no qual os mercados são capazes de resistir à adversidade e as empresas são conscientes de que precisam ter uma visão de muito longo prazo.
Ao mesmo tempo, Morel retoma o conceito de múltiplas transições simultâneas para acrescentar mais uma ideia: “As transições são inflacionárias por definição, sobretudo no contexto geopolítico e ambiental”.
Portanto, a tese principal com a qual trabalha o especialista é um ambiente reflacionário e mais orientado à normalização econômica (crescimento mais equilibrado entre consumo e investimento), em que a normalização monetária das taxas de juros após anos de juros zero está induzindo, por sua vez, uma normalização dos ativos financeiros.
Se colocarmos todos esses ingredientes em uma coqueteleira, o especialista conclui que ocorreu “um alinhamento planetário a favor de um choque de produtividade”. “O investimento está de volta e ainda não há excesso de investimento; vemos maior inovação (IA, robótica, biotecnologia, energia…) e há um impulso público que favorece a extensão da inovação por toda a economia”. Nesse sentido, Morel antecipa que em 2026 ocorrerá uma reaceleração no desembolso de recursos dos fundos Next Generation.
O que poderia dar errado? O especialista concluiu seu análise explicando que o principal risco nesse ambiente é a instabilidade financeira: “O incremento da alavancagem ameaça a estabilidade e, por isso, estamos monitorando a taxa de endividamento marginal, que é um indicador de bolha, embora eu não acredite que estejamos em uma bolha. É possível que estejamos em um regime de exuberância financeira”, concluiu.



