Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês do século XIX e considerado o pai do existencialismo, assumiu o legado da filosofia clássica colocando no centro perguntas como “quem sou eu?” ou “como devo viver?”, uma essência que aparece de forma transversal nas conclusões do último estudo elaborado pela IE University e Abante sobre os family offices para empresas familiares, que aborda os desafios e estratégias para a criação de riqueza.
Pode parecer estranho o nexo entre a figura de Kierkegaard e os family offices de empresas familiares, mas, segundo a experiência de Cristina Cruz, diretora do IE Center for Family Business, a chave do sucesso dessa figura está em ter claro o que se quer. “Há um primeiro exercício de reflexão que as famílias com projetos empresariais precisam fazer para poder manter, ao longo do tempo, seu family office. Sem dúvida, definir a missão é um passo prévio inadiável, depois virá buscar e identificar como se organizar”, defende Cruz.
Segundo Belén Alarcón, sócia-diretora de Assessoria Patrimonial da Abante, a maioria quer que seu patrimônio transcenda gerações e gere impacto. “Em nossa experiência, trata-se de investir e criar riqueza, mas, acima de tudo, da motivação que as famílias têm. Quando não se trabalha o propósito ou a motivação, as coisas geralmente não saem bem. Nesse sentido, não se trata apenas de multiplicar os ativos, mas de fazer com que seu legado continue e transcenda as próximas gerações, gerando impacto, mas também coesão familiar e valores familiares. Nós, como assessores, tentamos ajudar as famílias a se fazerem essas perguntas”, acrescenta Alarcón.
Diga o que você quer e eu direi que tipo de SFO você é
O contexto que justifica esse relatório é claro: estamos diante da maior transferência de riqueza. Estima-se que 124 bilhões de dólares mudarão de mãos, e muitas dessas mãos estão relacionadas a projetos empresariais de famílias. “Esse processo acarreta um boom de crescimento dos family offices. Calcula-se que no mundo existam cerca de 8.000 e, com essa sucessão geracional, o número pode aumentar 73% entre 2024 e 2030, aumentando também seu patrimônio”, aponta Cruz.
Essa tendência de crescimento também afetará a Espanha onde, os family offices de empresas se caracterizam por serem de segunda geração, terem um tamanho pequeno e um patrimônio que vem de três fontes: a venda total da empresa familiar, uma venda parcial e aqueles onde a família ainda controla a empresa.
Mas, afinal, de que tipo de family offices estamos falando? Segundo as conclusões do relatório, embora exista grande heterogeneidade entre os SFO (Single Family Office), podem-se identificar três tipos: o geracional, o investidor e o empreendedor. Cruz explica que, em todos eles, o desafio é fazer conviver os aspectos familiar, empresarial e financeiro, e, em cada um deles, esses fatores têm pesos diferentes.
O relatório explica, por exemplo, que em um SFO geracional a gestão do patrimônio financeiro é liderada por profissionais externos e há uma alta terceirização de produtos. Além disso, a família investe em conjunto e exige atenção personalizada aos patrimônios pessoais ou por ramos familiares. No caso de um SFO investidor, essa gestão é liderada por um membro da família ou um externo com amplo conhecimento financeiro, e investe-se separadamente com relação ao patrimônio de cada ramo, mas sem fechar a porta para investimentos conjuntos em temas pontuais.
Por fim, no SFO empreendedor, a gestão do patrimônio financeiro é liderada por um membro da família, mas com amplo apoio de profissionais externos. “Investem de forma conjunta ou separada e estão abertos à coinvestimento conforme o alinhamento de interesses entre os membros da família”, aponta o relatório.
“É importante pensar que tipo de family office você é para saber como desenhá-lo, acertando no tamanho e na estrutura, assim como qual será seu asset allocation e a distribuição entre os diferentes tipos de ativos”, aponta Cruz.
O que os preocupa?
Das entrevistas realizadas com family offices de empresas familiares para esse estudo, Cruz destaca que, muitas vezes, tomam decisões que não estão totalmente relacionadas à rentabilidade, mas sim à família. “Sem dúvida, eles se preocupam em aumentar a rentabilidade de seu patrimônio, mas o que mais os inquieta é a gestão entre as diferentes gerações familiares, evitar conflitos e garantir que todos estejam bem informados”, acrescenta Cruz.
A conclusão que o relatório traz é que os principais desafios enfrentados pelos donos e gestores dos SFO é tentar garantir que exista um alinhamento entre a missão do family office e a forma como ele foi desenhado para responder a essa missão. “Esses problemas surgem quando há conflito de interesses entre as partes envolvidas na propriedade e na gestão de uma organização. No caso dos SFO, assim como nas empresas familiares, esses conflitos podem surgir não apenas entre acionistas e executivos, mas também entre os membros da família empresária. A natureza privada desses SFO intensifica alguns desses conflitos de interesses, já que, sendo a própria família o único cliente, os SFO não estão sujeitos ao mesmo nível de prestação de contas que outras entidades financeiras. Essa menor prestação de contas leva, muitas vezes, à ausência de objetivos de investimento claros, o que dificulta o alinhamento de metas e o acompanhamento e avaliação do desempenho dos investimentos”, aponta o documento.
Nesse sentido, o relatório identifica dois desafios claros: envolver as próximas gerações sem gerar dependência e atrair talento externo. “Eles sabem que cometem vieses, especialmente aqueles que viveram um evento forte de mercado ou de liquidez, que às vezes lhes faltam objetivos claros e acabam se deixando levar por recomendações de amigos, e se preocupam em colocar seu patrimônio nas mãos de um gestor externo à família”, aponta Cruz sobre as inquietações que têm.
Proposta de melhores práticas
Frente a essa análise, preocupações e desafios, o relatório propõe sete áreas em que os family offices de empresas familiares podem trabalhar, tomando como referência as seguintes melhores práticas na gestão de um SFO:
Estabelecer uma direção e regras para o patrimônio
Definir uma estratégia de investimento
Incorporar a tecnologia na tomada de decisões
Criar incentivos para retenção e atração de talentos
Formação e atração das novas gerações
Formação de alianças e colaborações
Valorizar as vantagens competitivas do SFO